domingo, 22 de novembro de 2009

Obrigado

 Aos que me dão lugar no bonde
e que conheço não sei de onde,

aos que me dizem terno adeus
sem que lhes saiba os nomes seus,

aos que me chamam de deputado
quando nem mesmo sou jurado,

aos que, de bons, se babam: mestre!
inda se escrevo o que não preste,

aos que me julgam primo-irmão
do rei da fava ou do Hindustão,

aos que me pensam milionário
se pego aumento de salário

— e aos que me negam cumprimento
sem o mais mínimo argumento,

aos que não sabem que eu existo,
até mesmo quando os assisto.

aos que me trancam sua cara
de carinho alérgica e avara,

aos que me tacham de ultrabeócia
a pretensão de vir da Escócia,

aos que vomitam (sic) meus poemas
nos mais simples vendo problemas,

aos que, sabendo-me mais pobre,
me negariam pano ou cobre

— eu agradeço humildemente
gesto assim vário e divergente,

graças ao qual, em dois minutos,
tal como o fumo dos charutos,

já subo aos céus, já volvo ao chão,
pois tudo e nada nada são.

Extraído da antologia "Carlos Drummond de Andrade - Poesia completa", Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 2002, pág. 313.

O seu santo nome

Não facilite com a palavra amor. Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.

O que se passa na cama

(O que se passa na cama é segredo de quem ama.)

É segredo de quem ama
não conhecer pela rama
gozo que seja profundo,
elaborado na terra
e tão fora deste mundo
que o corpo, encontrando o corpo
e por ele navegando,
atinge a paz de outro horto,
noutro mundo: paz de morto,
nirvana, sono do pênis.

Ai, cama canção de cuna,
dorme, menina, nanana,
dorme onça suçuarana,
dorme cândida vagina,
dorme a última sirena
ou a penúltima… O pênis
dorme, puma, americana
fera exausta. Dorme, fulva
grinalda de tua vulva.

E silenciem os que amam,
entre lençol e cortina
ainda úmidos de sêmen,
estes segredos de cama.

O fim no começo

A palavra cortada na primeira sílaba.
A consoante esvanecida
sem que a língua atingisse o alvéolo.
O que jamais se esqueceria
pois nem principiou a ser lembrado.
O campo – havia, havia um campo?
irremediavelmente murcho em sombra
antes de imaginar-se a figura
de um campo.

A vida não chega a ser breve.

O fim das coisas

Fechado o Cinema Odeon, na Rua da Bahia. Fechado para sempre.
Não é possível, minha mocidade
fecha com ele um pouco.
Não amadureci ainda bastante
para aceitar a morte das coisas
que minhas coisas são, sendo de outrem,
e até aplaudi-la, quando for o caso.
(Amadurecerei um dia?)
Não aceito, por enquanto, o Cinema Glória,
maior, mais americano, mais isso-e-aquilo.
Quero é o derrotado Cinema Odeon,
o miúdo, fora-de-moda Cinema Odeon.
A espera na sala de espera. A matinê
com Buck Jones, tombos, tiros, tramas.
A primeira sessão e a segunda sessão da noite.
A divina orquestra, mesmo não divina,
costumeira. O jornal da Fox. William S. Hart.
As meninas-de-família na platéia.
A impossível (sonhada) bolinação,
pobre sátiro em potencial.
Exijo em nome da lei ou fora da lei
que se reabram as portas e volte o passado
musical, waldemarpissilândico, sublime agora
que para sempre submerge em funeral de sombras
neste primeiro lutulento de janeiro
de 1928.

O enterrado vivo

É sempre no passado aquele orgasmo, é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

O Deus de cada homem

Quando digo “meu Deus”, afirmo a propriedade.
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade.

Quando digo “meu Deus”,
crio cumplicidade.
Mais fraco, sou mais forte
do que a desirmandade.

Quando digo “meu Deus”,
grito minha orfandade.
O rei que me ofereço
rouba-me a liberdade.

Quando digo “meu Deus”,
choro minha ansiedade.
Não sei que fazer dele
na microeternidade.