quinta-feira, 24 de setembro de 2009

A Máquina do Mundo


E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco


se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seci; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas


lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,


a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.


Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável


pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exauta de mentar


toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.


Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e instituições restavam
a quem de os ter usado os já perdera


e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,


convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,


assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco o simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,


a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
"Ou que procuraste em ti ou fora de


teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,


olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,


essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo


se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste...vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo."


As mais soberbaspontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge


distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos


e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber


no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,


e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;


e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,


tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.


Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,


a esperança mais mínima - esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;


como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face


que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,


passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes


em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,


baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.


A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,


se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mão pensas.


Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

terça-feira, 22 de setembro de 2009

amor

Amor


Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração para de funcionar
por alguns segundos, preste atenção. Pode ser a pessoa mais importante da
sua vida.

Se os olhares se cruzarem e neste momento houver o mesmo brilho intenso
entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o
dia em que nasceu.

Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante e os olhos
encherem d'água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.

Se o primeiro e o último pensamento do dia for essa pessoa, se a vontade de
ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um
presente divino: o amor.

Se um dia tiver que pedir perdão um ao outro por algum motivo e em troca
receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem mais
que mil palavras, entregue-se: vocês foram feitos um pro outro.

Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a
outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las
com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar com ela em qualquer
momento de sua vida.

Se você conseguir em pensamento sentir o cheiro da pessoa como se ela
estivesse ali do seu lado... se você achar a pessoa maravilhosamente linda,
mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos
emaranhados...

Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que
está marcado para a noite... Se você não consegue imaginar, de maneira
nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado...

Se você tiver a certeza que vai ver a pessoa envelhecendo e, mesmo assim,
tiver a convicção que vai continuar sendo louco por ela... se você preferir
morrer antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida. É uma
dádiva.

Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou
encontram um amor verdadeiro. Ou às vezes encontram e por não prestarem
atenção nesses sinais, deixam o amor passar, sem deixá-lo acontecer
verdadeiramente.

É o livre-arbítrio. Por isso preste atenção nos sinais, não deixe que as
loucuras do dia a dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: o amor.


Autor: Carlos Drummond de Andrade

Ao Amor Antigo

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.

O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.

Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
a antigo amor, porém, nunca fenece
e a cada dia surge mais amante.

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.


Autor: Carlos Drummond de Andrade

as razõs o amor

As sem-razões do amor


Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabe sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque te amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.


Autor: Carlos Drummond de Andrade

domingo, 20 de setembro de 2009

Suas Mãos

Aquele doce que ela faz
quem mais saberia fazê-lo?

Tentam. Insistem, caprichando.
Mandam vir o leite mais nobre.
Ovos de qualidade são os mesmos,
manteiga, a mesma,
iguais açúcar e canela.
É tudo igual. As mãos (as mães?)
são diferentes.

Autor: Carlos Drummond de Andrade