domingo, 15 de novembro de 2009

Antepassado

Só te conheço de retrato,
não te conheço de verdade,
mas teu sangue bole em meu sangue
e sem saber te vivo em mim
e sem saber vou copiando
tuas imprevistas maneiras,
mais do que isso: teu fremente
modo de ser, enclausurado
entre ferros de conveniência
ou aranhóis de burguesia,
vou descobrindo o que me deste
sem saber que o davas, na líquida
transmissão de taras e dons,
vou te compreendendo, somente
de esmerilar em teu retrato
o que a pacatez de um retrato
ou o seu vago negativo,
nele implícito e reticente,
filtra de um homem; sua face
oculta de si mesmo; impulso
primitivo; paixão insone
e mais trevosas intenções
que jamais assumiram ato
nem mesmo sombra de palavra,
mas ficaram dentro de ti
cozinhadas em lenha surda.
Acabei descobrindo tudo
que teus papéis não confessaram
nem a memória de família
transmitiu como fato histórico
e agora te conheço mais
do que a mim próprio me conheço,
pois sou teu vaso e transcendência,
teu duende mal encarnado.
Refaço os gestos que o retrato
não pode ter, aqueles gestos
que ficaram em ti à espera
de tardia repetição,
e tão meus eles se tornaram,
tão aderentes ao meu ser
que suponho tu os copiaste
de mim antes que eu os fizesse,
e furtando-me a iniciativa,
meu ladrão, roubaste-me o espírito.

6 comentários:

  1. Impressionante como é atual esse texto. Conheço filhos que não foram criados pelos pais e repetem gestos iguais ou parecidos.

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    1. Meu irmão foi abandonado pelo meu pai. Não sabia - um dia cismei que tinha uma irmã - me veio do nada. Enlouqueci toda familia com perguntas. Achei - era um homem. Mesma voz! Mesmos gestos, mesmo modo de sentar, riso igual ! Aos 70 anos, 65 sem ver nosso pai, de quem não se lembrava, nem em fotos. Como explicar ?

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  2. Minha avó morreu aos 36 anos, e não a conhecendo, quero pensar que vive em mim.
    Minha neta de 15 anos,meu neto de 13, perderam o pai,meu filho adorado, há 10 anos. Quem sabe um dia entendam e se reconheçam neste poema absurdamente lindo ?

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  3. Embora haja uma ligação geracional com esses padrões gestuais e comportamentais, prefiro focar a singularidade que se faz, apesar destes elementos, mas também não nego sua existência. Não entendo o novo como réplica,mas a algo que se arrasta qie se amalga com o outro lado patental mais a singularidade de cada um.

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  4. Amo essa poesia! Venho trabalhando na minha árvore genealógica há tempos... está enorme. Encontrei muitos documentos, fotos. Nesse trabalho todo, vou compreendendo a minha identidade.

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